Jornal Médico (JM) – A apresentação pública da proposta de reconfiguração dos centros de saúde e da criação dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACS) decorreu em 2007.
O Programa do XVII Governo Constitucional, na altura, previa a reestruturação
dos centros de saúde, através da criação de Unidades de Saúde Familiar (USF's), consagrando os cuidados de saúde primários como o pilar central do Sistema de Saúde e os centros de saúde como a base institucional. Passados cinco anos, considera que este objetivo foi alcançado?
Fernando Leal da Costa (FLC) – A reforma dos cuidados de saúde primários ainda está em curso. Os últimos dados de que disponho, enviados em 7 de janeiro, apontam para termos 356 USF's em atividade, 161 de modelo B. Temos ainda muito para fazer, até porque o objetivo que este Governo pretende é o de assegurar um médico de família para todos os que o desejarem.
JM – O que correu bem e o que falhou?
FLC – Indiscutivelmente, a nossa maior dificuldade está ao nível dos profissionais disponíveis, em particular médicos. Se me perguntar qual a maior falha do modelo, diria que está na presunção, um pouco precipitada, de que as USF's iriam ser sempre mais economicamente eficientes do que os outros tipos de unidades de Clínica Geral. Há também o "abandono" a que as UCSP foram de algum modo votadas.
Vamos ter de rever a distribuição e a forma de calcular os objetivos para a distribuição de incentivos, para garantir a máxima eficiência económica das USF's e "puxar" pelas UCSP's. Estas últimas não podem ser unidades de segunda categoria, encaradas como o que "restou" da reforma. O outro grande desafio será dotar todos os concelhos com, pelo menos, uma UCC. É essencial que isso aconteça.
JM – Com a reforma dos cuidados de saúde primários, na sua opinião, houve uma maior proximidade/qualidade?
FLC – Julgo que o mais importante são as opiniões e o grau de satisfação dos utentes e profissionais, que confirmam isso mesmo.
JM – Ao longo do tempo, os resultados fizeram-se notar cada vez com mais evidência, dado que a criação de USF´s cresceu a um ritmo "alucinante"...
FLC – Eu não diria que o ritmo de crescimento de USF's tenha sido "alucinante". Há quem tenha dito que, em 2012, o ritmo de aparecimento de novas USF's abrandou. Não é tão verdade como se possa pensar. Desde o pico de 2009, em que houve a entrada em funcionamento de 71 novas unidades, esse valor diminui nos anos seguintes, para 48, 44 e 38 em cada ano. Esperamos que este ano haja mais entradas de novas unidades do que em 2012.
JM – Qual a região do país onde predominam?
FLC – O Norte lidera, com 186 unidades em funcionamento, seguido de Lisboa e Vale do Tejo, com 111, e só depois é que vem o Centro, com 36 USF's. O Alentejo tem 14 e o Algarve 9. Note que há diferenças marcantes em termos de número de habitantes e de densidade populacional entre as regiões. Eu diria que temos de olhar com atenção para a comparação dos números entre Norte e ARS LVT, já que se esperariam, talvez, mais USF's na região de Lisboa e concelhos limítrofes.
JM – Na sua opinião, qual a justificação para o facto da região Norte ser a que tem mais USF's?
FLC – Penso que há razões históricas de maior interesse pelo processo no Norte, maior vontade dos médicos em criar USF´s – não nos esqueçamos de que se trata de um processo voluntário –, provavelmente, maior celeridade em apreciar as candidaturas, maior concentração urbana. Mas estou a especular e acho que seria bom tentar perceber se há razões, imputáveis ao Ministério da Saúde, que sejam parte das causas. Se assim for, só nos resta tentar corrigir os desequilíbrios e motivar os médicos para que se criem mais USF's.
JM – Neste momento, quantos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e administrativos) estão a trabalhar em USF´s em todo o país?
FLC – O número de que disponho é de 6898, dos quais 2480 são médicos e 2456 são enfermeiros. Mil novecentos e sessenta e dois são "secretários clínicos" e não tenho agora números sobre outros profissionais. O meu comentário a estes números é de que, a este nível, há uma carência, em termos proporcionais, de enfermeiros. É desejável que a relação numérica entre médicos e enfermeiros favoreça os segundos.
JM – Quantas USF´s funcionam tendo por base os vários modelos, A, B e C? Quais as grandes diferenças entre os três?
FLC – Temos 195 USF's modelo A e 161 modelo B. Ainda não temos qualquer USF modelo C.
JM – Apesar da implementação das USF´s no país, mesmo assim, ainda se constata que muitos portugueses não têm médico de família. Que medidas têm sido adotadas para "ultrapassar" o problema?
FLC – Durante os últimos anos, a solução foi contratar médicos no estrangeiro. Não colocamos de parte essa eventualidade, mas esperamos que não seja necessário fazê-lo contínua ou duradoiramente. Apostamos no aumento de vagas para o internato de especialidade de Medicina Geral e Familiar; em colocação célere; aumento de vagas para os assistentes desta especialidade; aumento do número de utentes nos colegas que entram agora para os quadros e para todos os que, estando ainda no regime de 35 horas, optarem pelo das 40 horas; apostamos igualmente na contratação de médicos reformados, em tempo parcial e completo. Note que, até agora, só é possível a recontratação de reformados em tempo completo e nós estamos a tentar criar o mecanismo legal que permita recontratações a tempos parciais para captar mais clínicos. Finalmente, uma medida de extrema importância e desejada pelos profissionais: estamos a atualizar as listas de utentes.
JM – Houve um aumento do número de vagas nas faculdades de Medicina?
FLC – Sim, mas julgo que atingimos o ponto máximo de entradas nas faculdades de Medicina e ainda temos médicos de nacionalidade portuguesa que se formaram no estrangeiro, noutros países da UE.
JM – Em termos gerais, o que ganharam os utentes com a implementação de Unidades de Saúde Familiar em Portugal? Os serviços clínicos aumentaram em termos de quantidade e qualidade?
FLC – Julgo já ter respondido a essa pergunta. Temos mais utentes com médico e a disponibilidade dos médicos é muito maior. Há vários indicadores assistenciais, até ao nível da medicina preventiva, que o comprovam. Mas é justo e necessário dizer que temos UCSP's com um desempenho excelente, algumas com índices superiores aos de USF's. Estou convicto de que as USF's devem ser, e muitas vezes, são um incentivo para as UCSP's, que têm de ser acarinhadas e estimuladas. Idealmente, deveríamos ter uma generalização dos incentivos em toda a área dos cuidados primários e, logo que possível, a todo o SNS.
JM – Como analisa a forma de funcionamento das USF´s? Quais os pontos fortes e fracos?
FLC – Julgo que o ponto mais fraco, que estamos a rever, é o facto de termos critérios de avaliação e objetivos que já estão um pouco desatualizados. Mas isso não compromete, nem invalida o modelo. Nada é imutável e vamos evoluir sem destruir o conceito de responsabilização e partilha multidisciplinar que caracteriza as USF's.
JM – Relativamente a toda esta matéria, quais as medidas que o atual Governo implementou e/ou ainda pretende implementar para contribuir para a melhoria dos cuidados prestados à população?
FLC – Estamos a estudar a possibilidade de implementação de USF's de modelo C, a definir com clareza o que é o Enfermeiro de Família no SNS, a considerar a maior colaboração entre especialistas hospitalares e de Medicina Geral e Familiar, revimos as áreas dos ACES's, abrimos vagas para internos e para especialistas, firmámos um acordo com os médicos para a atualização de listas de médicos de família e, ao abrigo do mesmo acordo, vamos ter uma carreira de 40 horas na MGF, inaugurámos vários centros de saúde – por exemplo, o da Quinta do Conde, que estava para abrir há muitos anos –, temos alguns em construção, inclusivamente em Lisboa, assegurámos a reposição de médicos estrangeiros que, entretanto, regressaram ao seu país de origem, generalizámos a prescrição eletrónica e a prescrição por DCI, decidimos vacinar, gratuitamente, todas as pessoas com mais de 65 anos – numa primeira fase, para depois alargarmos o programa a todas as pessoas em risco e, mais recentemente, a toda a população que ainda não esteja vacinada e o deseje fazer –, vamos avançar com unidades coordenadoras para a diabetes. Enfim, muitas medidas... Estou certo de que me esqueci de alguma.
JM – Por fim, como perspetiva o futuro das USF´s, assim como os cuidados prestados aos doentes, dado que o país se encontra a atravessar uma fase económica conturbada?
FLC – Com a certeza de que é um modelo para manter e fazer crescer, desde que assegurada uma relação de eficiência clínica e económica que sustente o modelo. É assim para todo o SNS. Queremos e vamos mantê-lo, universal, geral e tendencialmente gratuito. Para isso, precisamos que ele seja sustentável. E a sustentabilidade do SNS começa ao nível dos cuidados primários.